sexta-feira, 24 de março de 2023

ENFRENTAR O SOFRIMENTO EM PÉ


Sofrer faz parte da nossa vida. Desde o nascimento, que é uma grande aflição tanto para o bebê quanto para a mãe, até a hora de nossa morte, que será nosso último momento de dor, sofremos. Alguns sofrem mais, outros sofrem menos, mas é impossível viver sem esses constantes companheiros: dor e sofrimento.

A origem desse mal foi o pecado original. O plano de Deus para o ser humano era uma existência sem dor e sem morte, mas, pela desobediência e orgulho de nossos primeiros pais, o sofrimento passou a fazer parte da nossa vida. Assim, a questão levantada é: é possível sofrer bem? É possível fazer com que o sofrimento se transforme em benefício para nós?

A experiência me diz que é possível, pois há pessoas que enfrentam os maiores sofrimentos e não perdem a paz nem a alegria. Outras, porém, face a alguma dor, podem sucumbir e se desesperar. A minha impressão é que nos tempos passados, quando não havia tanta tecnologia à disposição e a vida diária era muito mais difícil do que a que vivemos hoje, as pessoas eram mais resilientes, suportavam melhor as dores e as amarguras. E hoje, a chamada “geração Nutella” não suporta o menor contragosto.

Certamente a vida ter se tornado mais fácil é um fator que contribui para que as pessoas fiquem mais fracas frente às adversidades. Mas não é só isso: a grande maioria das pessoas não enxerga um sentido para o sofrimento, então, não importa se ele é grande ou pequeno, a pessoa se abate e muitas vezes não deseja mais continuar vivendo.

Dessa forma, para podermos enfrentar o sofrimento em pé, com fortaleza e coragem, o primeiro passo é entender que todo sofrimento, seja ele consequência de nossas atitudes ou permitidos diretamente por Deus pelas circunstâncias da vida, são destinados a nos tornarem pessoas melhores e mais fortes. É uma das formas que Deus tem de chamar a nossa atenção para Ele, para voltarmos nosso olhar e nossos corações para o Pai, suplicando sua ajuda e cuidado.

Outra função do sofrimento é nos ensinar a amar mais e melhor. A única maneira que posso provar meu amor por alguém ou que me sinto verdadeiramente amada, é quando sofro pelo outro ou vejo o outro sofrer por mim. O sofrimento é uma forma de me desprender do meu egoísmo, do meu orgulho, dos meus gostos, para mostrar como aquela pessoa que amo é importante para mim.

Então, se acolho as dores e angústias de minha vida como um chamado do Pai a me entregar inteiramente em suas mãos amorosas, tudo fica mais leve, fica mais fácil. Ver que aquele momento que estou passando faz parte do plano de amor do Pai para a minha vida, que tem um único objetivo: estar um dia com Ele na glória do Céu. Para ir para o Céu, é preciso aprender a amar de verdade e o amor verdadeiro requer o aniquilamento de si mesmo para se entregar inteiramente a quem amo. E Deus, sendo Amor, sabe retribuir com alegrias indescritíveis àqueles que se entregam totalmente a Ele.

Claro que amar assim não é fácil e se dependesse apenas da minha vontade, de fazer sacrifícios voluntários, nunca aprenderia a amar, pois meu egoísmo é muito grande. A bondade infinita do Pai, então, permite os sofrimentos para que aprenda mais rapidamente e mais eficazmente, esse processo do amor, que se esvazia para receber do outro o melhor. E o próprio Deus nos deu o exemplo de como amar de verdade: se encarnou e deu sua vida por mim, por você, por cada um de nós, para provar seu amor e para nos possibilitar estarmos um dia na alegria eterna do Céu. Uma só gota de sangue de Jesus seria suficiente para salvar a humanidade toda, mas para o amor infinito dele por nós, não era suficiente. Quis dar todo o seu sangue e passar pelas maiores dores e humilhações para nos mostrar o quanto nos ama e nos quer junto dele.

Uma cena da Paixão de Cristo sempre me intrigou: por que somente S. João ficou em pé sob a Cruz? Como ele, que era o mais jovem dos apóstolos, teve essa força extraordinária de acompanhar os últimos momentos de vida de seu Mestre amado? A resposta mais obvia para mim foi porque ele estava junto com a Virgem Maria. Foi Maria Santíssima que o ajudou a suportar tanta dor e sofrimento, que ela mesma estava sentindo de maneira superabundante. Perto de Maria, foi possível ficar em pé em meio a tão grande sofrimento.

Então, precisamos aprender com S. João: nos momentos de angústia, de dor, de sofrimento, peçamos colo à Mãe de Deus. Peçamos a ela que nos acompanhe nos momentos de tribulação, que nos dê as forças necessárias para aprender tudo o que o Pai quer nos ensinar com os sofrimentos que permite para nossas vidas. Maria, como boa mãe, fará de tudo para que nosso sofrimento seja aliviado e que não sejamos abatidos pela dor. A Mãe cuida de tudo perfeitamente bem.

Foto de Catherine na Unsplash 

sexta-feira, 10 de março de 2023

A SEGUNDA CONVERSÃO

Na Quarta Feira de Cinzas, quando recebemos as cinzas em nossa fronte, fomos convidados: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. Mas será que realmente precisamos de conversão? Afinal já estamos na igreja, participamos da santa missa pelo menos aos domingos e dias santos, já ouvimos o chamado de Jesus e respondemos: “aqui estou”. Recebemos os sacramentos do batismo, primeira eucaristia e até o crisma; cumprimos os mandamentos da Igreja de pagar o dízimo, confessar pelo menos uma vez por ano, fazer jejum e abstinência de carne na Quarta Feira de Cinzas e na Sexta-Feira Santa. Então como assim eu preciso de conversão? Esse chamado não é só para os pecadores, aqueles que estão fora ou afastados da Igreja?

O que é a segunda conversão?

Na verdade, para aqueles que já tem uma vida espiritual, de caminhada dentro da Igreja e cumpre os mandamentos, o chamado é para uma segunda conversão. É como passar da infância para a adolescência da fé. O Pe. Garrigou Lagrange explica: “Os autores espirituais, com frequência, têm escrito também sobre esta segunda conversão, necessária para um cristão que, após ter pensado seriamente na sua salvação e ter-se esforçado por caminhar no caminho de Deus, recomeça a cair, pela ladeira de sua natureza, numa certa tibieza, como uma planta que foi enxertada, mas que tende a voltar para o estado selvagem”.[1]

A segunda conversão dos Apóstolos

Os Apóstolos também passaram por essa segunda conversão. Todos foram chamados pessoalmente por Jesus e deram seu “sim” à missão. Eles foram testemunha de toda a pregação do Reino de Deus, viram os milagres, foram ordenados sacerdotes na última ceia e receberam pela primeira vez a sagrada eucaristia. Mas na hora da Paixão, do sofrimento, quase todos abandonaram seu Mestre. S. Pedro, o primeiro Papa, chegou a negar Jesus por três vezes.

Através desse sofrimento que experimentaram testemunhando a Paixão, cada um deles (a exceção de Judas Iscariotes, que não acreditou na infinita misericórdia do Pai), arrependidos de sua covardia de abandonarem Jesus, passaram pela segunda conversão. S. Pedro, através do olhar de Jesus após a negação, teve a perfeita contrição e foi curado de sua presunção, tornando-se mais humilde. S. João, o único que por uma graça especial teve forças para permanecer aos pés da cruz, se converteu ao ouvir as últimas palavras de Jesus antes dele entregar seu espírito.

Assim, um a um dos apóstolos, no período entre a Paixão e depois da Ressurreição, foram se convertendo pela segunda vez e abrindo os olhos, compreendendo realmente o que significa ser cristão, como está narrado na passagem dos discípulos de Emaús, que reconheceram Jesus no partir do pão.

Chamado a aprofundar a fé e o amor

Da mesma forma que os apóstolos precisaram passar por uma segunda conversão, também nós somos chamados a aprofundarmos nossa fé e nosso amor a Jesus. São as nossas imperfeições que exigem essa segunda conversão, especialmente nosso amor próprio, nossa tendência a querer fazer tudo do nosso jeito, impondo nossa vontade. Esse amor-próprio desordenado é fonte de muitos pecados veniais, por isso é necessária essa purificação.

Apesar de ser o melhor para a nossa alma, Deus respeita imensamente a nossa liberdade e espera o nosso “sim” ao seu chamado para buscarmos a perfeição, a santidade. Ele sabe que o amamos, mas ainda somos demasiadamente apegados a nós mesmos, aos nossos gostos e vontades. E para sair desse estado, é preciso deixar Deus agir em nossa alma, através da purificação dos sentidos.

Essa purificação se dá através de um conhecimento experimental de nossa miséria e de nossa profunda imperfeição, como nos diz Sta. Catarina de Sena, junto com uma certa aridez da alma, um afastamento sensível de Jesus, sem sentir consolação ou gosto na prática da oração e atos de piedade. É preciso que o Senhor se afaste um pouco da alma, para que ela consiga se desapegar de si mesma e das coisas desse mundo, para estar pronta a se entregar inteiramente ao Pai.

Frutos da segunda conversão

Nos ensinamentos do Pe. Garrigou Lagrange “os frutos desta segunda conversão são, como aconteceu com S. Pedro, um começo de contemplação pelo entendimento progressivo do grande mistério da Cruz ou da Redenção, entendimento proveniente do valor infinito do Sangue do Salvador derramado por nós. Com esta contemplação nascente, há uma união com Deus mais livre das flutuações da sensibilidade, mais pura, mais forte, mais contínua.”[2] Podemos experimentar alegria e maior paz em nossa alma, mesmo em meio às adversidades. Experimentamos realmente que Deus nos ama e cuida de cada detalhe de nossas vidas.

Como chegar a essa segunda conversão?

Mas como chegar a essa segunda conversão? Deus é extremamente gentil e não fará nada sem o nosso consentimento, então precisamos pedir a graça desse aprofundamento na fé e no amor. “Senhor eu creio, mas aumenta a minha fé” (Mc 9, 24). Pedir a fé é a única oração que podemos ter certeza absoluta de que será atendida, porque esta é a vontade do Pai para cada um de nós, que tenhamos fé. E pedir para amar mais e amar melhor a Deus é um pedido que certamente lhe agrada, pois aos poucos nos tornaremos menos egoístas e menos centrados em nossos desejos, para estarmos livres para servir melhor a Deus e ao próximo.

Aproveitemos esse tempo de Quaresma, onde somos chamados a aprofundar nossa vida de oração, a olharmos para nós mesmos, para nossa alma e ver o que precisa ser mudado, e peçamos a graça dessa segunda conversão.

 



[1] LAGRANGE, Garrigou “As 3 vias e as três conversões”, 4ª edição, Ed. Permanência, pg. 41

[2] LAGRANGE, Garrigou “As 3 vias e as três conversões”, 4ª edição, Ed. Permanência, pg. 54

Crédito da foto: pixabay.com