Na Quarta Feira de Cinzas, quando
recebemos as cinzas em nossa fronte, fomos convidados: “Convertei-vos e crede
no Evangelho”. Mas será que realmente precisamos de conversão? Afinal já
estamos na igreja, participamos da santa missa pelo menos aos domingos e dias
santos, já ouvimos o chamado de Jesus e respondemos: “aqui estou”. Recebemos os
sacramentos do batismo, primeira eucaristia e até o crisma; cumprimos os
mandamentos da Igreja de pagar o dízimo, confessar pelo menos uma vez por ano,
fazer jejum e abstinência de carne na Quarta Feira de Cinzas e na Sexta-Feira
Santa. Então como assim eu preciso de conversão? Esse chamado não é só para os
pecadores, aqueles que estão fora ou afastados da Igreja?
O que é a segunda conversão?
Na verdade, para aqueles que já
tem uma vida espiritual, de caminhada dentro da Igreja e cumpre os mandamentos,
o chamado é para uma segunda conversão. É como passar da infância para a
adolescência da fé. O Pe. Garrigou Lagrange explica: “Os autores
espirituais, com frequência, têm escrito também sobre esta segunda conversão,
necessária para um cristão que, após ter pensado seriamente na sua salvação e
ter-se esforçado por caminhar no caminho de Deus, recomeça a cair, pela ladeira
de sua natureza, numa certa tibieza, como uma planta que foi enxertada, mas que
tende a voltar para o estado selvagem”.[1]
A segunda conversão dos Apóstolos
Os Apóstolos também passaram por
essa segunda conversão. Todos foram chamados pessoalmente por Jesus e deram seu
“sim” à missão. Eles foram testemunha de toda a pregação do Reino de Deus, viram
os milagres, foram ordenados sacerdotes na última ceia e receberam pela
primeira vez a sagrada eucaristia. Mas na hora da Paixão, do sofrimento, quase
todos abandonaram seu Mestre. S. Pedro, o primeiro Papa, chegou a negar Jesus por
três vezes.
Através desse sofrimento que experimentaram
testemunhando a Paixão, cada um deles (a exceção de Judas Iscariotes, que não
acreditou na infinita misericórdia do Pai), arrependidos de sua covardia de
abandonarem Jesus, passaram pela segunda conversão. S. Pedro, através do olhar
de Jesus após a negação, teve a perfeita contrição e foi curado de sua presunção,
tornando-se mais humilde. S. João, o único que por uma graça especial teve
forças para permanecer aos pés da cruz, se converteu ao ouvir as últimas
palavras de Jesus antes dele entregar seu espírito.
Assim, um a um dos apóstolos, no
período entre a Paixão e depois da Ressurreição, foram se convertendo pela
segunda vez e abrindo os olhos, compreendendo realmente o que significa ser
cristão, como está narrado na passagem dos discípulos de Emaús, que reconheceram
Jesus no partir do pão.
Chamado a aprofundar a fé e o
amor
Da mesma forma que os apóstolos
precisaram passar por uma segunda conversão, também nós somos chamados a aprofundarmos
nossa fé e nosso amor a Jesus. São as nossas imperfeições que exigem essa
segunda conversão, especialmente nosso amor próprio, nossa tendência a querer
fazer tudo do nosso jeito, impondo nossa vontade. Esse amor-próprio desordenado
é fonte de muitos pecados veniais, por isso é necessária essa purificação.
Apesar de ser o melhor para a
nossa alma, Deus respeita imensamente a nossa liberdade e espera o nosso “sim”
ao seu chamado para buscarmos a perfeição, a santidade. Ele sabe que o amamos,
mas ainda somos demasiadamente apegados a nós mesmos, aos nossos gostos e
vontades. E para sair desse estado, é preciso deixar Deus agir em nossa alma, através
da purificação dos sentidos.
Essa purificação se dá através de
um conhecimento experimental de nossa miséria e de nossa profunda imperfeição,
como nos diz Sta. Catarina de Sena, junto com uma certa aridez da alma, um
afastamento sensível de Jesus, sem sentir consolação ou gosto na prática da
oração e atos de piedade. É preciso que o Senhor se afaste um pouco da alma,
para que ela consiga se desapegar de si mesma e das coisas desse mundo, para
estar pronta a se entregar inteiramente ao Pai.
Frutos da segunda conversão
Nos ensinamentos do Pe. Garrigou
Lagrange “os frutos desta segunda conversão são, como aconteceu com S.
Pedro, um começo de contemplação pelo entendimento progressivo do grande
mistério da Cruz ou da Redenção, entendimento proveniente do valor infinito do
Sangue do Salvador derramado por nós. Com esta contemplação nascente, há uma
união com Deus mais livre das flutuações da sensibilidade, mais pura, mais
forte, mais contínua.”[2]
Podemos experimentar alegria e maior paz em nossa alma, mesmo em meio às
adversidades. Experimentamos realmente que Deus nos ama e cuida de cada detalhe
de nossas vidas.
Como chegar a essa segunda conversão?
Mas como chegar a essa segunda
conversão? Deus é extremamente gentil e não fará nada sem o nosso consentimento,
então precisamos pedir a graça desse aprofundamento na fé e no amor. “Senhor eu
creio, mas aumenta a minha fé” (Mc 9, 24). Pedir a fé é a única oração que
podemos ter certeza absoluta de que será atendida, porque esta é a vontade do
Pai para cada um de nós, que tenhamos fé. E pedir para amar mais e amar melhor
a Deus é um pedido que certamente lhe agrada, pois aos poucos nos tornaremos
menos egoístas e menos centrados em nossos desejos, para estarmos livres para
servir melhor a Deus e ao próximo.
Aproveitemos esse tempo de
Quaresma, onde somos chamados a aprofundar nossa vida de oração, a olharmos
para nós mesmos, para nossa alma e ver o que precisa ser mudado, e peçamos a
graça dessa segunda conversão.
[1] LAGRANGE, Garrigou “As 3 vias e as três
conversões”, 4ª edição, Ed. Permanência, pg. 41
[2] LAGRANGE,
Garrigou “As 3 vias e as três conversões”, 4ª edição, Ed. Permanência, pg. 54
Crédito da foto: pixabay.com
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